sábado, maio 24, 2003

Pessoas.

Não vou falar de Fernando Pessoas, também não é sobre nenhuma de suas pessoas. Vou falar das gentes que me assustam e encantam. Da atração e repulsa em adentrar no mundo cotidiano. Nesse mundo normal dos seres que sem perceber fazem parte de uma engrenagem, de um sistema que engole tudo e massifica através de notícias de jornais tornando o sublime, banal.
Essa polifonia discursiva que recebemos diariamente e refratamos sem perceber, essa memória voluntária e seletiva. As multidões solitárias que andam diariamente nas ruas de São Paulo, sem notar a beleza e a poesia que as envolve, sem notar a tristeza que as segue e, indo além, sem notar suas próprias aflições, suas inquietações íntimas, suas experiências.
A solidão é cada vez mais aglomerada, é cada vez mais latente e, no entanto, cada vez menos explorada e entendida. Uma aglomeração de seres solitários que se entendem solitários, mas não entedem essa solidão, não pensam nela, apenas declaram que estão sós. Tal qual um alcoólatra que se diz alcoólatra, mas não pensa nas causas e enxerga seu alcoolismo como uma doença.
Quero falar sobre os passantes, os viúvos da esperança, os filhos de um mundo moderno que tenta explicar tudo para que não precisemos perguntar. Não temos tempo nem paciência para perguntas, não temos tempo nem paciência para deixar outros passarem conosco, necessitamos passar sozinhos porque o passo do outro vai atrapalhar. Filhos de um mundo que não tem tempo para pensar, refletir e, principalmente, um mundo cada dia mais individualista, mas não intimista. As massas já não são multidões, as massas são indivíduos igualmente solitários que se aglomeram e se separam na solidão povoada de seus lares.

A Uma Passante


(Charles Baudelaire - tradução Guilherme de Almeida )

A rua, em torno, era ensurdecedora vaia.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão vaidosa
Erguendo e balançando a barra alva da saia;

Pernas de estátua, era fidalga, ágil e fina.
Eu bebia, como um basbaque extravagante,
No tempestuoso céu do seu olhar distante,
A doçura que encanta e o prazer que assassina.

Brilho... e a noite depois! - Fugitiva beldade
De um olhar que me fez nascer segunda vez,
Não mais te hei de rever senão na eternidade?

Longe daquí! tarde demais! nunca talvez!
Pois não sabes de mim, não sei que fim levaste,
Tu que eu teria amado, ó tu que o adivinhaste!



Para Quem sabe francês:

A Une Passante
(Charles BAUDELAIRE (1821-1867) (Recueil : Les fleurs du mal).

La rue assourdissante autour de moi hurlait.
Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse,
Une femme passa, d’une main fastueuse
Soulevant, balançant le feston et l’ourlet;

Agile et noble, avec sa jambe de statue.
Moi, je buvais, crispé comme un extravagant,
Dans son oeil, ciel livide où germe l’ouragan,
La douceur qui fascine et le plaisir qui tue.

Un éclair... puis la nuit! - Fugitive beauté
Dont le regard m’a fait soudainement renaitre,
Ne te verrai-je plus que dans l’éternité?

Ailleurs; bien loin d’ici! Trop tard!Jamais peut-être!
Car j’ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais,
O toi que j’eusse aimée, ô toi qui le savais!

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