sábado, junho 07, 2003

Contando Causo



Lá estava eu de novo, no mesmo lugar, na mesma hora e fazendo a mesma coisa. As pessoas começaram a acertar seus relógios no momento em que pedi o já tão sabido suco de pêssego. O dono da lanchonete nem perguntava mais o que eu iria querer, era só olhar para as minhas mãos levantadas, tentando chamar o garçon.

Sempre fazendo tudo igual, tornei-me uma cotidiana convicta. As mudanças me apavoram. Talvez seja porque sou mulher e, de certo modo, estou sempre tendo que lidar com mudanças no meu corpo e no meu humor. Não sei, não posso afirmar com certeza, mas posso reservar-me o direito de tentar controlar, ao menos, as minhas atitudes e o meu cotidiano.

No momento em que meu suco chegou, algo estranho aconteceu: um rapaz, com uma parte do rosto deformada, aproximou-se e pediu pra sentar ao meu lado. Seu rosto causava-me asco. Não conseguia olhar para ele. Era como se sua deformação deformasse também o meu cotidiano tão rígido e planejado. Insultou-me sua indiferença ao perceber que eu não gostei de sua presença e insultou-me quando resolveu conversar comigo:

- Olá.

Fiz um gesto com a cabeça.

- Olha pra mim, eu, por acaso, te assusto?

- Anrã.

- Você também me assusta...

Como ele poderia dizer isso? Por que alguém como eu causaria pavor em alguém como ele, deformado e horrendo.

- Faz sempre as mesmas coisas, os mesmos gestos. Chega no horário toda segunda, chega atrasada toda quarta. Pede o mesmo sabor de suco, lê sempre o mesmo jornal. Não conversa com ninguém, quando é perguntada sobre si mesma, foge do assunto, disfarça, mostra-se incomodada. Garanto que se ocorresse um crime nessa região eu suspeitaria de você.

Aquelas palavras me deixaram atordoada. E mais apavorada fiquei, quando ele disse:

- Seu cigarro está aí do lado e o isqueiro no bolso esquerdo da calça, como sempre, mas você sempre esquece. Vai, acenda. É o momento do seu cigarro, não é?

Era o momento do meu cigarro. Era o momento da procura. Ele tinha razão, o cigarro e o isqueiro estavam nos mesmos lugares de sempre. Respondi enfurecida:

- Tá, eu sou previsível, e daí? Eu odeio as pessoas, detesto as mudanças e acho um saco pessoas como você, sentarem ao meu lado, falarem sobre as minhas manias e ainda acusarem-me de psicopata! Tá, você pode suspeitar de mim se um crime acontecer, mas os outros vão suspeitar de você!

- É, eu sei...

Olhou-me de um jeito triste e se foi.

Dias depois o rapaz faleceu. Tinha uma doença que eu não sabia qual era e nem preocupei-me em saber. Não senti nada até saber que, antes de morrer, havia deixado um envelope para mim e pedido para ser entregue assim que ele morresse.

Estava escrito no envelope: Para moça das 16h, suco de pêssego e jornal.

Dentro não havia nada.

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