sábado, julho 05, 2003

Para uma amiga

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.


(Carlos Drummond de Andrade)


Vai, Niti! ser gauche na vida. Vai, Fulana! ser gauche na vida.
Vai e pega o bonde que está cheio de pernas, vai e ouça o que pergunta seu coração e não se importe se seus olhos não perguntam nada.
Não é fácil ser errado, dizem ser charmoso, dizem estar na moda. Mas se está na moda, não pode ser errado. Parece simples: coloque um piercing na língua, pinte o cabelo de vermelho, rosa ou azul, faça mil tatuagens e você está à margem.
Mas e a margem, e a sombra, e o bonde, e a fraqueza de não agüentar?
Tão difícil, tão árduo o olhar direcionar-se para outros lugares que não os convencionais. Tão penoso enxergar além e não conseguir entrar no meio da normalidade estabelicida. Seria mais simples se tudo fosse o piercing e/ou as tatuagens.

É Drummond, você estava certo!

“As atitudes inefáveis,
os inexprimíveis delíquios,
êxtases, espasmos, beatitudes
não são possíveis no Brasil


Não são mais possíveis no mundo. Tudo é perfeitamente engolido, vulgarizado, deixado de lado. E Che Guevara vira biquini, camiseta, jaqueta. Tá lá na novela, as meninas se gostam, vão imitar. E os olhos começam a perguntar. Mas o coração não pergunta nada.

Vai, Niti! ser gauche na vida. Vai tentar emprestar alma à multidão, vai descobrir que os homens das multidões são os gênios dos crimes perfeitos, porque não conseguem estar sós.

Ce grand malheur, de ne pouvoir être Seul” (La Bruyère) -

Grande desgraça de não poder estar só e sempre ter que procurar o outro.

É Drummond, você estava certo!

Os romeiros sobem a ladeira
Cheia de espinhos, cheia de pedras,
Sobem a ladeira que leva a Deus
E vão deixando culpas no caminho.


E quantas culpas nos caminhos de pedras, cheios de espinhos. Quantos espinhos e culpas colocaram no mundo, criando romeiros. Criando, também, os zombeteiros.

Vai, Fulana! ser gauche na vida. Vai tentar ouvir o coração que pergunta e os olhos que não perguntam nada.

Vai, pega o bonde que a gente se encontra lá. Olhando para as tantas pernas que ali vão estar, pernas diferentes, as minhas e as suas, mas pernas erradas, à margem, que não sabemos pra onde irão nos levar.

Nenhum comentário: