quarta-feira, setembro 17, 2003

Todo chinelo velho tem seu pé doente

Questiono-me o tempo inteiro, faço perguntas sobre a minha solidão. Antes não fazia, porém, parafraseando Simone de Beauvoir em Todos os Homens são mortais , já não é mais a solidão orgulhosa de outrora, agora sou uma mulher perdida sob o céu. Isso se deve ao ano atribulado que tive e ainda estou tendo, a como me senti sozinha, com a necessidade de ser amada.
Faço inúmeras teorias e perguntas como: "quem aguentaria uma mulher que não liga em sair de casa com pasta de dente no canto da boca, sem o menor saco de passar um batom e que filosofa até em propaganda de cachaça"?
Aquele discurso de que o importante é o conteúdo é muito bonito, mas sabemos que não é bem assim e, também, conteúdo demais irrita as pessoas. Filosofia demais enche o saco e eu sei que falo demais e irrito as pessoas.
Eu sou "demais", no sentido literal da palavra, não da gíria. No sentido da música do Tom Jobim, também. Às vezes acho que vou passar minha vida esquecendo uma pessoa, porque eu não sei esquecer, minha memória é uma maldição. Esqueço das coisas práticas, mas a subjetividade assombra meu cérebro e posso dizer cada detalhe de uma conversa que tive com alguém há mais de dois anos, inclusive seus gestos.
Contudo, acho que, apesar de tudo, apesar de estar sozinha, tenho me feito outra pergunta, muito mais importante. Tenho perguntado se vale realmente a pena querer parecer alguém que não sou, só porque algumas pessoas se irritaram com meu jeito, porque me senti ridícula em algumas situações e, principalmente, se sou tão ruim assim como tenho me pintado (e como algumas pessoas me pintaram também).
Minha madrinha dizia: "todo chinelo velho tem seu pé doente". Devo ter meu pé doente, quem sabe o velho chinelo guardado atrás da porta, saia de lá hoje mesmo. Quem sabe ele resolva andar sozinho, sem pé algum. Ou talvez eu encontre, já na maturidade, um amor, dado assim, de presente....

Campo de flores

(Carlos Drummond de Andrade)

Deus me deu um amor no tempo de madureza,
quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme.
Deus-ou foi talvez o Diabo-deu-me este amor maduro,
e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor.

Pois que tenho um amor, volto aos mitos pretéritos
e outros acrescento aos que amor já criou.
Eis que eu mesmo me torno o mito mais radioso
e talhado em penumbra sou e não sou, mas sou.

Mas sou cada vez mais, eu que não me sabia
e cansado de mim julgava que era o mundo
um vácuo atormentado, um sistema de erros.
Amanhecem de novo as antigas manhãs
que não vivi jamais, pois jamais me sorriram.

Mas me sorriam sempre atrás de tua sombra
imensa e contraída como letra no muro
e só hoje presente.
Deus me deu um amor porque o mereci.
De tantos que já tive ou tiveram em mim,
o sumo se espremeu para fazer vinho
ou foi sangue, talvez, que se armou em coágulo.

E o tempo que levou uma rosa indecisa
a tirar sua cor dessas chamas extintas
era o tempo mais justo. Era tempo de terra.
Onde não há jardim, as flores nascem de um
secreto investimento em formas improváveis.

Hoje tenho um amor e me faço espaçoso
para arrecadar as alfaias de muitos
amantes desgovernados, no mundo, ou triunfantes,
e ao vê-los amorosos e transidos em torno,
o sagrado terror converto em jubilação.

Seu grão de angústia amor já me oferece
na mão esquerda. Enquanto a outra acaricia
os cabelos e a voz e o passo e a arquitetura
e o mistério que além faz os seres preciosos
à visão extasiada.

Mas, porque me tocou um amor crepuscular,
há que amar diferente. De uma grave paciência
ladrilhar minhas mãos. E talvez a ironia
tenha dilacerado a melhor doação.
Há que amar e calar.
Para fora do tempo arrasto meus despojos
e estou vivo na luz que baixa e me confunde.

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