domingo, maio 23, 2004

Achocolatado

Os termômetros marcavam dez graus e a neblina cobria essa cidade que já é cinza por natureza. Ainda assim resolvi sair, não aguentava mais ficar prostrada diante da TV, zapeando. Precisava de gente e de ficção. Decidi ir ao cinema.
O frio parecia emudecer as pessoas e as impedia de sorrir. Durante o caminho, percebia a imagem do meu rosto refletida nas vitrines das lojas já fechadas. Era um rosto acinzentado e de espera. Eu me vi parecida com uma velha professora que conheci há quinze anos atrás. Ela usava óculos que ocupavam muito mais que a área dos olhos, seu corte de cabelo lembrava as francesinhas da década de 30 e seu rosto era acinzentado e de espera.
Apesar da delicadeza da película, não saí tocada como gostaria. O frio tocava-me muito mais naquele momento e por isso resolvi passar num supermercado para comprar achocolatado, antes de voltar para casa.
Já com achocolatado na bolsa, seguia rumo à estação de metrô quando fui surpreendida por uma voz:
- De onde você está vindo, menina?
Era ele, só podia ser, reconheceria aquela voz ainda que não a ouvisse por décadas, fora o hábito de chamar-me de menina, apesar de termos a mesma idade, apenas alguns meses de diferença. Olhei para trás e tive a confirmação. Estava acompanhado por uma garota que deveria ter no máximo 20 anos.
Fiquei parada sem conseguir dizer uma palavra. Estava paralisada olhando o casal.
Novamente ele perguntou:
- De onde você está vindo, menina?
- Do mercado, fui comprar achoco... - não consegui terminar a frase; um alarme tocou no meu cérebro e denunciou a grande bobagem que eu estava dizendo.
Ele, é claro, não perderia a piada por nada e logo disse:
- Nossa, precisava vir do outro lado da cidade para comprar um achocolatado?
A garota, sem entender, perguntou:
- Como assim, onde ela mora?
Fiquei completamente atordoada ao ver a expressão da moça quando ele respondeu sua pergunta. Ela olhou-me como quem fosse dizer: "você é maluca, sair nesse frio só para comprar achocolatado e num supermercado tão longe da sua casa? "
Já tinha levado a fama, resolvi deixar o constrangimento de lado e respondi:
- Pois é, eu sou viciada em a achocolatado, não posso ficar nenhum segundo sem. Mas tem que ser o de uma marca específica e não tinha perto de casa, nem por todos os supermecados no caminho até aqui. Ainda bem que encontrei , minhas crises de abstinência são terríveis. Quase matei meu irmão, da última vez e cheguei a ferir, gravemente, meu cachorro.
A moça ficou assustada, parecia realmente acreditar que eu seria capaz de matar se ficasse sem achocolatado. Ele, porém, percebeu a brincadeira e sorria como no tempo em que estávamos juntos. Por instantes nos olhamos como se estivéssemos lembrando dos mesmos momentos, como se perguntássemos: "por quê"?
A mão de sua acompanhante entrelaçando a dele, indicando que pretendia ir embora, respondeu nossa pergunta. Constrangido, despediu-se de mim friamente e foi embora com ela.
Eu continuei em direção ao metrô, caminhando com a mesma lentidão e timidez da lágrima que caia sobre meu rosto que já não esperava mais nada...

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