terça-feira, outubro 14, 2003

Corra, Nice! Corra!

"Se o filme está ruim, a gente fecha os olhos e imagina outro final"
(Jô)

Acordei. Voz do Chico Buarque cantando "Carolina". Ouvi minha mãe gritando:
- Corra, Nice! Corra!
- Hã? Correr?
- Vai buscar o remédio, precisamos do remédio. Só ele pode curar. Mas a farmácia está fechada, vai ter que ir lá na Avenida. Na 24 horas.
- Ué, manda ele ir de carro...
- Claro que não, podemos precisar do carro se você não chegar em tempo. Pode piorar. Corre! Anda!
Saí correndo, corri por 15 minutos como uma louca. Mas fumo demais, estava sem fôlego. São 28 cigarros por dia...
- Que precisão! Vinte e oito contados...
Essa voz! Ouço essa voz desde os dois anos...
- É, estou fazendo um diário tipo Bridget Jones. Depois de passar o ano novo bebendo como uma louca e ouvindo Creep, resolvi fazer um diário. Ao menos Radiohead não é tão degradante quanto Celine Dion...
- Mas também não tem um Hugh Grant na sua vida, né?
- É... você tem razão...
Continuei correndo, correndo e parando. Cheguei à farmácia, estava fechando. Tentei impedir e coloquei minhas mãos na porta. Cortei os pulsos.
Voltei pra casa, jorrava sangue. Não havia ninguém, apenas o meu cachorro que ria da minha cara.
Fade.
Acordei. Voz do Chico Buarque cantando "Carolina". Ouvi minha mãe gritando:
- Corra, Nice! Corra!
- Hã? Correr?
- Vai buscar o remédio, precisamos do remédio. Mas a farmácia está fechada, vai ter que ir lá na Avenida. Na 24 horas.
- Ué, manda ele ir de carro...
- Claro que não, podemos precisar do carro se você não chegar em tempo. Pode piorar. Corre! Anda!

Saí correndo, mas dessa vez, achei melhor ir de bicicleta. Pedalava como uma desesperada, quando percebi que a bicicleta estava sem freio.
- Claro que estava sem freio, se não estivesse, não seria sua bicicleta.
- Você de novo...
- Claro, estou sempre com você, desde quando tinha dois anos e chorava na janela.
- É, está certa.
- Sempre estou certa. Sou a única coisa certa da vida.
Continuei pedalando como desesperada. Um carro se aproximou. Capotei, e caí. Fui levada para dentro do carro. Tinha uma sirene e ao meu lado uma caixa de madeira que me cutucava. Perguntei o que era e ele disse que era um caixão. Fiquei assustada e ele me explicou que era o carro da Funerária. Ouço gargalhadas de dentro do caixão:
- Nem assim você consegue, né?
-Tinha que ser você.
-Você me chamou, ué.
Joguei-me do carro. Voltei pra casa, um machucado no tornozelo direito. Ninguém em casa, apenas o meu cachorro que tirava o maior sarro da minha cara.
Fade.
Acordei. Voz do Chico Buarque cantando "Carolina". Ouvi minha mãe gritando:
- Corra, Nice! Corra!
- Hã? Correr?
- Vai buscar o remédio, precisamos do remédio. Mas a farmácia está fechada, vai ter que ir lá na Avenida. Na 24 horas.
- Ué, manda ele ir de carro...
- Claro que não, podemos precisar do carro se você não chegar em tempo. Pode piorar. Corre! Anda!
Saí. Chovia em São Paulo. As ruas alagadas, comecei a nadar.
- Mas você não sabe nadar!
- É, por isso me afoguei...
- Mas te salvaram, olha lá...
Voltei pra casa. Toda molhada. Ninguém em casa, apenas o meu cachorro que não parava de rir.
Fade.
Acordei. Voz do Chico Buarque cantando "Carolina". Ouvi minha mãe gritando:
- Corra, Nice! Corra!
- Hã? Correr?
- Vai buscar o remédio, precisamos do remédio. Mas a farmácia está fechada, vai ter que ir lá na Avenida. Na 24 horas.
- Ué, manda ele ir de carro...
- Claro que não, podemos precisar do carro se você não chegar em tempo. Pode piorar. Corre! Anda!
Saí correndo. Descolei uma carona com meu vizinho. Cheguei na farmácia e estava aberta. Comprei o remédio.
Voltei pra casa e não havia ninguém, nem o meu cachorro. Tomei todos os remédios.
- Não tem jeito. Não acha que tá na hora de parar de correr?
- Correr é bom...
- Você fuma demais pra isso...Outra coisa que deveria parar.
- Mas é que sem eles vou me sentir tão sozinha.
- Você já está sozinha. Afasta todo mundo.
- Estou grogue...
- Claro, tomou tanta bola... e nem barato dá... Vai é te fazer dormir. Agora dorme aí que eu preciso ir.
- Você volta?
- Sinto dizer-lhe que sim. Por isso pára de correr pra mim e de si mesma. É melhor tentar mudar o SEU filme.
Adormeci.
Fade.
Acordei. Voz de Chico Buarque cantando "Até o fim". Ninguém em casa, apenas um bilhete na geladeira:
Nice,
Fomos à praia. Voltaremos em quatro dias.
Seu pai está bravo, a conta telefônica chegou. Vai se preparando.

Olhei na folhinha e pela data do bilhete já havia passado os quatros dias. A porta se abriu. Todos entrando queimados, sorridentes e de óculos escuros. Inclusive meu cachorro. Ele sorria cinicamente, canto de boca. Quando todos entraram, fechei a porta e o ouvi dizer:
- Pega, Nice! Pega!


***Quando escrevi isso, achei que iria sair no meio da sessão de cinema e não chegar ao final, mas hoje, Felipe, pode ter certeza, eu vou até o fim, como sempre fui, mesmo tentando não ir.

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