domingo, outubro 26, 2003

Porque recordar é viver...

Ou preguiça de inventar coisas novas...
Post repetido, diretamente de antigos detalhes...

Inexistência


Ela saiu naquela tarde de Quinta ?feira. Foi encontrar-se com o desconhecido. A vida não havia sido gentil com ela, mas ela também nunca fora gentil com a vida e nem consigo mesma.
Nunca passava desapercebida e isso a fazia sentir-se apavorada. A sensação de inexistência era o que sempre procurava. O anonimato paradoxal foi o que construíra. Queria fazer parte da vida das pessoas, mas não de forma direta, ninguém precisava saber que havia sido ela a causadora de alguma mudança, para o mal ou para o bem. Contudo, se fosse para ser lembrada, seria melhor que fosse pela sua crueldade, preferia existir nas pessoas de forma cruel e assim, jamais mostraria a ninguém toda sua fragilidade e insegurança.
Menina insegura, jovem solitária, mulher indefinida, quase um ser andrógeno. Não se arrumou, não vestiu a sua melhor roupa. Apenas tomou um banho, vestiu-se como de costume e foi ao lugar marcado.
Chegou atrasada, não gostava de atrasos, porém sempre chegava. Não se importou muito com o que o rapaz pensaria, preocupava-se com ela, com a sensação de desconforto ao fazer sempre algo que não admitia.
Foi simpática. O abraço convidativo que ele a dera a fez sentir-se mais tranqüila, embora continuasse nervosa. Não mais pelo atraso, mas por algo que encontrou em seu olhar. Incomodava-a aquele olhar tão crente e tão ávido por viver. Insultava-a de certa forma.
A tarde foi agradável, nem sentiu o tempo passar. Esquecera de seus compromissos, jamais os esquecia, mesmo que não existisse compromisso algum. Na presença de outras pessoas sentir-se parte delas era impossível. Ainda que fosse gentil e agradável, não sentia-se bem. Naquela tarde sentiu-se.
As horas foram passando, não queria ir embora. Precisava alimentar-se da crença e da pureza que transbordavam naquele olhar. Prestava atenção em cada detalhe, reparando em cada gesto e, principalmente, em seu silêncio. Como era doce o silêncio. Quis fazer parte daquele silêncio, sentiu uma necessidade quase inconcebível de ser o motivo do silêncio de um homem que mais parecia uma criança desprotegida. Tão inseguro quanto um dia ela fora, quanto ela ainda era, mas usava máscaras para não ser percebida, não ser olhada ou mesmo reconhecida.
Por que ele não as usava? Como deixar que outros vejam tão claramente seu despreparo? Seria ele sempre tão menino e tão mortal? Pensava desconcertada. Não entendia tamanha pureza e sinceridade. Ela também era sincera, mas sua sinceridade era racional. Era verdadeira com seus pensamentos, não com seus sentimentos. Não concebia sinceridade nos sentimentos.
Ele tornou-se assustador. Teve medo quando a tocou pela primeira vez. Estavam ali há horas e de repente suas mãos encontraram as dela. Um simples entrelaçar de mãos que mais parecia um beijo roubado. Suas mãos eram quentes e ele parecia colocar todo seu desejo naquele toque. Um pavor surreal a tomou. Queria fugir, sair correndo, mas era tarde demais....


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